quarta-feira, 14 de maio de 2014

Bom Dia Alentejo , a Freguesia do Castelo, Lenda da Nossa Senhora do Cabo Espichel, a Água acalmou e ficou doce


Ano de 1215. Em Portugal reinava el-rei D. Afonso II. O Inverno tinha entrado duro. O vento zunia, impertinente e bravo. A chuva era grossa e caía sem pressa de chegar ao fim. O mar bramia, revoltado pelos assobios e açoites do vento. Enfurecido, arremessava-se de encontro às rochas que bordam a costa portuguesa. Joguete das ondas, surgiu mesmo em frente do cabo Espichel uma nau que pertencia a um mercador inglês, senhor de grande fortuna e génio aventureiro.
Com o cair da noite, a tempestade aumentava. A bordo viviam-se momentos trágicos. Apesar da coragem da tripulação, o navio parecia desfazer-se de momento a momento, batido como um simples brinquedo pela ventania brutal e pelo bailar diabólico das ondas revoltas. Então, no desespero causado pela tragédia, os homens recorreram ao padre Hildebrando, frade eremita dos agostinhos, que os acompanhava. O padre — dizia-se — trazia consigo uma pequena imagem milagrosa. Um dos marinheiros mais afoitos gritou:
— Padre, salvai-nos! Só vós podeis ajudar-nos!
Os outros fizeram coro:
— Salvai-nos, padre!
O padre, que parecia meditar, quase indiferente ao espectáculo que o rodeava, ergueu o olhar para os que pediam a sua ajuda. Falou-lhes:
— Tende calma, meus filhos! Tende coragem! Deus há-de valer-nos! Deus e Nossa Senhora, cuja imagem sempre me acompanha. Vou buscá-la para que a possais contemplar. E tende fé, muita fé! Ela há-de fazer mais este milagre!
O marinheiro que primeiro havia falado gritou, cortando o barulho da tempestade:
— Deus o oiça!
Os outros imploraram:
— Que Nossa Senhora nos salve!
O padre, conforme pôde, pois os balanços da nau eram fortes, foi buscar a imagem. Mas, quando regressava, uma onda mais alta cobriu os homens. Houve gritos, alarido, entre o escorrer da água do mar. Quando a onda passou, os homens estavam todos. Bem se olhavam, tentando localizar-se. Mas o padre juntava as mãos vazias num gesto desesperado.
Gritou:
— Meus filhos! A santa imagem desapareceu!
Logo os homens se lamentaram em altos brados:
— Estamos perdidos! Perdidos!
O padre pareceu recobrar a calma.
— Não devemos perder a fé! Oiçam-me! Vamos ajoelhar conforme pudermos. Aproximai-vos de mim! E faremos em conjunto uma oração, como se fôssemos um só. Dizei comigo: «Ave, Maria… cheia de Graça...».
A oração sobrepôs-se à tempestade. E quando chegou ao fim, os homens não podiam crer no que os seus olhos viam. Por estranho milagre tudo se transformara. As ondas tinham acalmado. O vento deixara de soprar. A chuva não caía mais. E uma luz intensa iluminava o Oceano. Luz tão bela e tão forte como a que, segundo contam os antigos, surgira naquela noite singular em que a Virgem Mãe dera à luz o Menino Deus!
A manhã raiava. O dia nascera claro. Alegres como crianças, os homens pisaram terra firme. Com eles ia o bom padre Hildebrando. E foi ele quem fez a maravilhosa descoberta. Cheio de alegria, gritou:
— Olhai, meus filhos, olhai!... Reparai para esta caverna do cabo! Depressa! Quero que verifiqueis com os vossos próprios olhos! É ela, não é verdade? É a imagem de Nossa Senhora que eu trazia!
Os homens haviam acorrido e olhavam surpreendidos tão precioso achado. Lá estava, de facto, numa das pequenas cavernas do cabo Espichel, como se tivesse sido posta ali por mãos divinas, a pequena imagem de Nossa Senhora, envolta numa autêntica auréola de luz. Padre Hildebrando exclamou com unção:
— Foi um milagre que agradeço ao Céu!
E voltando-se para os marítimos:
— Meus filhos! Agora já vos posso dizer toda a verdade! A imagem que observais foi talhada e feita pelos próprios anjos! É única no mundo! Ajoelhai, meus filhos!
Os homens ajoelharam, em muda contemplação. Só os seus pensamentos se elevaram numa prece nem sempre bem definida.

E conta a lenda velhinha que, a expensas de toda a tripulação e com o consentimento superior, ali mesmo se construiu uma capelinha para guardar tão preciosa imagem. Como capelão, ficou o padre Hildebrando. E assim começou a história de Nossa Senhora do Cabo Espichel.
Os anos passaram. Dois séculos, talvez. E foi por volta do ano 1410 que um velho de Alcabideche teve, certa noite, uma visão de espantar. Estava ele no quintalório da sua casinha quando viu subitamente, lá ao longe, uma estrela muito luminosa, muito brilhante. Tentou o velho localizá-la e calculou que essa estrela devia estar sobre o cabo Espichel.
A pé, a distância de Alcabideche ao cabo era grande e difícil. Foi o velho deitar-se, sempre a pensar na estrela. De madrugada sonhou que a própria estrela lhe falara, dizendo:
— Admiras-te do meu brilho, que encandeia os teus olhos? Pois não te admires! Marco uma presença grandiosa: a de Nossa Senhora! Sim... Nossa Senhora está numa lapa do cabo Espichel. Vai lá vê-La e constrói uma nova capelinha, já que a outra foi destruída. Vai, não demores! Nossa Senhora do Cabo espera por ti!
Quando, no sonho, a estrela desapareceu, o velho acordou. Mas passou o resto da noite num sobressalto. Não conseguia conciliar o sono. Assim, mal a alva rompeu, o velho de Alcabideche pôs-se a caminho. Andou, andou, quase sem descansar. Atravessou o Tejo num batel. A noite chegou. Apressou o passo até à povoação mais próxima, e encontrou-se na Caparica, onde, exausto, resolveu pedir pousada. Discretamente, bateu a uma porta. De dentro, uma voz feminina perguntou:
— Quem bate a estas horas?
O velho esclareceu:
— Perdi-me no caminho… e já é noite...
A mulher abriu a porta da casa e ficou-se a olhar o homem. Depois explicou:
— Vivo só... mas pode entrar. Também já sou velha...
O de Alcabideche entrou, agradecendo:
— Que Deus a recompense! Sinto-me, na verdade, tão cansado!
Ela indagou:
— Vem de muito longe?
Sentando-se e suspirando de alívio, ele concordou:
— Sim, venho de muito longe. E ainda terei muito que andar!
Curiosa, ela fez mais uma pergunta:
— Está a cumprir alguma promessa?
Ele meneou a cabeça:
— Não. Correspondo apenas a um pedido.
— Um pedido?
— Sim… e feito por uma estrela!
Ela admirou-se mais:
— Por uma estrela?... Por uma estrela do céu?
— Isso mesmo.
— Como é que isso foi?
— Eu lhe conto.

E, excitado pela recordação do sonho, o velhote de Alcabideche contou a sua estranha história à velhota da Caparica. Não cabendo em si de surpresa, a velhota exclamou:
— Santa Mãe de Deus! O que me diz! Mas isso é espantoso!
O velhote sorriu. E apontou, olhando por uma fresta da janela:
— Vê, além, aquela luz? Lá está a estrela! É ali que está a imagem da Virgem!
Ficou pensativa, a boa velhota. Por fim, disse ao de Alcabideche:
— Vá deitar-se, que precisa descansar. Durma bem, e amanhã voltaremos a falar no assunto.
Mas a velha não se deitou. Ficou olhando pela janela a estrela brilhante. De súbito falou alto, mesmo estando só:
— Como eu gostava de ir ao cabo Espichel! Como eu gostava!
Ergueu o busto. Os seus olhos baços brilhavam a um repentino pensamento. Exclamou:
— É isso mesmo! Vou à frente do velho! A luz me guiará! Vou mesmo de noite.

Dentro de pouco tempo será manhã. Eu desejo tanto ir orar à Senhora que está no Cabo!
Disse e fez. Embuçou-se num xaile e saiu, deixando o velho de Alcabideche entregue ao seu profundo sono.
Quando o velho despertou e se viu sozinho, logo compreendeu o que se havia passado. A manhã já ia alta. Afligiu-se por isso, mas disse para si mesmo:
— As mulheres são sempre as mesmas! Para que lhe comuniquei eu o meu segredo? Agora vai chegar em primeiro lugar. Tenho de caminhar tão depressa quanto possa!
E o de Alcabideche partiu em direcção ao Cabo. Estugava o passo. O desejo de encurtar o tempo que o separava da Senhora dava-lhe novas forças. E, assim, apesar da idade e do cansaço que o ia dominando, conseguiu chegar ao cabo Espichel.
Porém, o seu primeiro sentimento foi de desânimo, quase de revolta. Ajoelhada aos pés da Virgem, diante da lapa, estava a velha da Caparica. Ele zangou-se:
— Traiçoeira! Se queria vir, ao menos viesse comigo! Fui eu que lhe contei tudo. E foi a mim que a estrela disse para vir aqui!
A velha mostrou-se pouco à vontade.
— Traiçoeira, não! A Virgem pertence a todos! E se vossemecê dormia, porque havia eu de esperar?
Sobrepondo-se à voz da velha, uma voz bonita soou:
— Não se zanguem! Porque não hão-de ser os dois a promover a construção de uma nova capelinha neste lugar?
Os velhos entreolharam-se, primeiro amedrontados. Depois caíram de joelhos, e ali mesmo prometeram pedir a quem pudesse, para se construir a capelinha dedicada à Nossa Senhora do Cabo Espichel. E um raio de sol, como língua de fogo, beijou a cabeça dos dois velhos, absortos na contemplação da imagem da Virgem!
A nova capela foi construída. E ainda hoje lá está uma pedra gravada onde se lê uma inscrição comemorativa do facto. 
O tempo continuou correndo. E a feliz aventura dos dois velhos correu paralela ao tempo, tornando-se popularíssima. E como o povo português, na sua alma de poeta, perpetua em verso os factos que sente mais seus, logo surgiu a quadra que ficará de geração para geração:
O velho de Alcabideche
E a velha da Caparica
Foram à Rocha do Cabo,
Acharam prenda tão rica!

Fonte Gentil Marques: Lendas de Portugal, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume IV, pp. 283-287

Bom Dia Alentejo!