terça-feira, 10 de março de 2015

Bom Dia Alentejo, o Cante Alentejano, alma assim anda pelo mundo


A origem do Cante Alentejano mora algures numa zona-sombra da História. 
Ninguém, verdadeiramente, lhe descobriu ainda a fonte primeira. Eco de cantar árabe, tangido lá na distância de velha alcáçova, ou reminiscência do canto gregoriano, sedimentando o Verbo.
O poeta José Gomes Ferreira disse "nunca vi um alentejano cantar sozinho". (...). 
O Alentejo canta em coro, como sempre o terá feito. Mas o grupo coral não é a voz de uma solidão colectiva: é a adição de solidões individuais.
Nem o próprio cantar é uniforme. 
Tem altos e baixos. 
As vozes não soam todas ao mesmo tempo.
Há um ponto, um alto, um baixo.
Sons que se destacam no entoar moda, que é a soma da letra com a musicalidade das vozes.
A moda evolui, como tudo. A moda nasceu nos despiques da taverna, em redor do copo de vinho, nos ranchos da ceifa e da monda. Nasceu ao anoitecer no regresso dos ceifeiros a casa. Rompeu com os primeiros raios do astro, a surpreender os ranchos vergados sobre o trigo quando o trabalho se fazia "de sol a sol". 

O cante retrata a solidão e a tristeza. O amor e o trabalho. A alegria. O sol e a terra. O suor. Canta o trigo e as cegonhas. A emigração e a barragem do Alqueva. Canta a morte e a vida. Angústias e sonhos. Canta o homem perdido em incansáveis longitudes. É terno e quente. Ingénuo e grave. Sóbrio e triste. Solene como uma catedral. É como ela, eleva-se da terra, atingindo alturas tais que se mistura com o lamentodos descampados, não se sabendo já se são criaturas ou os próprios plainos que assim gemem.
É ao fim da tarde que o cantar se ergue. Levanta-se nas "vendas", cresce em redor do copo de vinho. Vem com a lua e com ela atravessa os ares. Temeroso, talvez, de o sol não voltar a nascer. 
Tantos são os cantares como os Alentejanos. 
As fronteiras do cante não têm de coincidir com as que, administrivante separam o Baixo do Alto Alentejo, ou os dividem a região pelos distritos de Beja, Évora e Portalegre. Os de Barrancos "cantam à espanhola e também à alentejana".
Pelo Redondo e por Campo Maior, ao longo de uma linha que se estende para a Beira Baixa, cantam-se "as saias" - cantar alegre, sem dispensar adufes.
Nos campos rasos de Castro Verde e de Ourique há trinados de viola campaniça. E por Vila Nova de S. Bento, Serpa, Cuba, ecoam os cantares em coro. 
Estas vilas erguem-se como das mais expressivas "catedrais do cante" alentejano.
Nos últimos anos o cante tem sido invadido por grupos instrumentais. Juntam às velhas letras os sons de violas e de bandolins, de concertinas e de órgãos electrónicos. Espécies de açordas com papo-secos.

O cuidado com o traje tem descido de Nível. 
Muitos corais, mesmo entre os que ainda não substituíram a música das vozes pela cacafonia dos sintetizadores terão perdido por completo o sentido estético de vestir. É possível escutar "castelo de Beja/ subindo lá vais/ tu metes inveja/ às águias reais" por ranchos equipados com vulgares calças de ganga de pronto a vestir, camisas brancas de fabrico em série e sapatos de ténis. Em vez da variedade etnográfica de traje surge uma farda. (...).
No entanto, autarquias e associações culturais ou de defesa do património têm vindo a procurar contrariar o pechisbeque. Estimulam festivais, encontros e concursos de grupos de cantares tradicionais. Contribuindo para a recuperação da memória de um povo.
Fonte: Portugal passo a passo - Alentejo, João Couto Nogueira e Pedro Ferro, Edições Ediclube...