A origem do Cante Alentejano mora algures numa zona-sombra da
História.
Ninguém, verdadeiramente, lhe descobriu ainda a fonte primeira. Eco de
cantar árabe, tangido lá na distância de velha alcáçova, ou reminiscência do
canto gregoriano, sedimentando o Verbo.
O poeta José Gomes Ferreira disse "nunca vi um alentejano cantar sozinho".
(...).
O Alentejo canta em coro, como sempre o terá feito. Mas o grupo coral não é
a voz de uma solidão colectiva: é a adição de solidões individuais.
Nem o próprio cantar é uniforme.
Tem altos e baixos.
As vozes não soam todas ao mesmo tempo.
Há um ponto, um alto, um baixo.
Sons que se destacam no entoar moda, que é a soma da letra com a
musicalidade das vozes.
A moda evolui, como tudo. A moda nasceu nos despiques da taverna, em redor
do copo de vinho, nos ranchos da ceifa e da monda. Nasceu ao anoitecer no
regresso dos ceifeiros a casa. Rompeu com os primeiros raios do astro, a
surpreender os ranchos vergados sobre o trigo quando o trabalho se fazia
"de sol a sol".
O cante retrata a
solidão e a tristeza. O amor e o trabalho. A alegria. O sol e a terra. O suor.
Canta o trigo e as cegonhas. A emigração e a barragem do Alqueva. Canta a morte
e a vida. Angústias e sonhos. Canta o homem perdido em incansáveis longitudes.
É terno e quente. Ingénuo e grave. Sóbrio e triste. Solene como uma catedral. É
como ela, eleva-se da terra, atingindo alturas tais que se mistura com o
lamentodos descampados, não se sabendo já se são criaturas ou os próprios
plainos que assim gemem.
É
ao fim da tarde que o cantar se ergue. Levanta-se nas "vendas",
cresce em redor do copo de vinho. Vem com a lua e com ela atravessa os ares.
Temeroso, talvez, de o sol não voltar a nascer.
Tantos
são os cantares como os Alentejanos.
As
fronteiras do cante não têm de coincidir com as que, administrivante separam o
Baixo do Alto Alentejo, ou os dividem a região pelos distritos de Beja, Évora e
Portalegre. Os de Barrancos "cantam à espanhola e também à
alentejana".
Pelo
Redondo e por Campo Maior, ao longo de uma linha que se estende para a Beira
Baixa, cantam-se "as saias" - cantar alegre, sem dispensar adufes.
Nos
campos rasos de Castro Verde e de Ourique há trinados de viola campaniça. E por
Vila Nova de S. Bento, Serpa, Cuba, ecoam os cantares em coro.
Estas
vilas erguem-se como das mais expressivas "catedrais do cante"
alentejano.
Nos
últimos anos o cante tem sido invadido por grupos instrumentais. Juntam às
velhas letras os sons de violas e de bandolins, de concertinas e de órgãos
electrónicos. Espécies de açordas com papo-secos.
O cuidado com o traje tem descido de Nível.
Muitos corais, mesmo entre os que ainda não substituíram a música das vozes
pela cacafonia dos sintetizadores terão perdido por completo o sentido estético
de vestir. É possível escutar "castelo de Beja/ subindo lá vais/ tu metes
inveja/ às águias reais" por ranchos equipados com vulgares calças de
ganga de pronto a vestir, camisas brancas de fabrico em série e sapatos de
ténis. Em vez da variedade etnográfica de traje surge uma farda. (...).
No entanto, autarquias e associações culturais ou de defesa do património
têm vindo a procurar contrariar o pechisbeque. Estimulam festivais, encontros e
concursos de grupos de cantares tradicionais. Contribuindo para a recuperação
da memória de um povo.
Fonte: Portugal passo a passo - Alentejo, João Couto
Nogueira e Pedro Ferro, Edições Ediclube...