A Lua elevava-se das bandas
do Levante, pondo um orvalho de prata nas campinas frescas e perfumadas que
circundavam a pequena povoação de Arucci-a-Nova.
Numa ponta da vila árabe emergia, com soberana altivez, a formosa torre
circular, em cujo minarete flutuava o pavilhão sagrado de Islam.
Sobre as
ruínas da antiga fortaleza mourisca que as hostes cristãs de Afonso Henriques
haviam feito arrasar, após um combate heróico com os sarracenos, o chefe árabe
Buaçou, companheiro de armas de Miramolim Abinussuf, — o agareno audaz e feliz,
que aos cristãos tomara parte das suas conquistas em terras alentejanas, no
reinado de D. Sancho I, — mandara construir e fortificar poderosamente o novo
castelo e cedera-o como dote a sua filha Salúquia, que aí governava como
«alcaidessa».
Salúquia era uma moura formosa, sonhadora e supersticiosa como
uma boa crente do Alcorão.
Fátima e Zuleima, as dilectas companheiras, olhavam com fraternal ternura o
perfil esbelto de Salúquia, a querida princesa — irmã, pródiga de sinceridade e
de carinhos para com todos, que jamais sentiram a altivez sobranceira da
senhora a recordar-lhes a humilhante condição de escravos.
Por isso Salúquia
era adorada na sua pequena corte. Todas as tardes, mal o sol se escondia para
as bandas do mar, a bela moura e a sua comitiva subiam ao minarete, e ali,
então, estendendo a vista até ao círculo escuro do horizonte de serranias,
passavam largo tempo desfiando lendas de guerra e de amor até à hora solene da
oração a Allah, que os lábios murmuravam numa prece de fé vinda do íntimo, com
tal elevação e misticismo, como se fora a própria alma a evolar-se da súplica
religiosa.
Cortando o silêncio, Fátima, a moura dos olhos azuis, disse:
«Salúquia, quando o luar tiver beijado as ondas do mar e o sol abrir de novo as
portas do Oriente, o teu noivo estará entre nós...
— Que Allah o permita, Fátima!
— E porque estás tão triste? — perguntou Zuleima.
— Por muito o amar! — replicou Salúquia. E por muito temer! — acrescentou
numa acentuação de vaga e sombria tristeza.
— Allah protege-o, e os cristãos estão muito longe! — exclamou Fátima,
numa afirmação cheia de confiança.
E Zuleima, a linda morena, filha de Granada, estendendo os braços na
direcção do Oriente, procurou indicar um ponto vago e impreciso.
— É por ali o caminho… conheço-o bem. Por ele me trouxe teu pai, como
cativa.
Salúquia elevou-se e, com ansiedade, fitou o olhar no sítio que Zuleima
queria determinar, e dos seus olhos negros parecia sair uma cintilação de
esperança, que a crença misteriosa de um estranho fatalismo não conseguiu
amortecer nos primeiros instantes.
No entanto, Salúquia pensava por vezes que
era infantil e injustificado aquele receio pela sorte do seu noivo, o príncipe mouro
Bráfama, alcaide e senhor do castelo de Arucci-Vetus (hoje a vila espanhola de
Aroche).
Bráfama enamorara-se perdidamente da filha de Buaçou e obtivera a
permissão para os esponsais.
Salúquia correspondia-lhe com paixão cheia de fidelidade, e uma aurora de amor,
que despertava nas duas almas, crescia em apoteose de intenso desejo e suprema
dedicação. Era esta a sua última noite de virgem. A madrugada, que dentro de
algumas horas iria despontar, traria envolta numa poeira de oiro, a finura
adorada de Bráfama, o prometido esposo, o estremecido ídolo da sua imensa
religião de mulher enamorada a florir na primavera dos vinte anos.
A brisa nocturna vinha rescendendo ao perfume suave das laranjeiras
toucadas de branco e dos roseirais em flor, como num delicioso consórcio
aromático, que tornava a atmosfera tépida e lânguida daquela noite de estio num
devaneio sensual, que embalava o coração e embriagava os sentidos.
Salúquia, de
olhos semi-cerrados, abandonava-se à lúbrica visão que o seu candente amor formava
de estranhas e caprichosas alucinações. Parecia que a figura musculosa e
varonil de Bráfama a estreitava docemente junto ao peito, encantando-a numa
música de promessas venturosas, que a alma ingénua acolhia alvoroçada e
receosa, Este prazer íntimo, que ela gozava em silêncio, era dum perturbador
enervamento, calmo e absorvente.
Apenas, de espaço a espaço, rápidos clarões de
sinistra superstição fulguravam, como centelhas dum rubro e sangrento colorido
num céu tranquilo de serena esperança. Nesses momentos, o coração
apertava-se-lhe numa contracção de dor, o rosto afogueava-se-lhe num rubro de
ansiedade, e esta impressão torturante, duma amargura horrível, vinha a
cristalizar-se nalgumas lágrimas, que tombaram dos olhos formosíssimos numa
cintilação brilhante.
Fátima, confrangida do sofrimento injustificado de Salúquia, e para a
distrair daqueles temores vagos, principiou uma narrativa de aventuras, uma das
muitas fantasias infantis que a sua alma em criança recolhera como herança
lendária da velha escrava Zara, que havia anos Allah chamara a si, talvez para
ouvir os contos lindos da velha moura.
Dez léguas separavam Arucci-Vetus, a terra do noivo de Salúquia, da
povoação onde esta governava como «alcaidessa», distância que se percorria no
espaço duma noite, de mais a mais quando o acicate do desejo havia de esporear
o cavalo de Bráfama, numa galopada alegre para a felicidade.
Ao cair da tarde, Bráfama e os seus deixaram Arucci-Vetus e puseram-se a
caminho, numa caravana resplandecente de luxo e venturosa galhardia. Era uma
cavalgada brilhante, em que os raios do sol, na agonia daquela tarde, punham
fulgurações de luz sangrenta no reflexo rútilo das pedrarias dos turbantes dos
cavaleiros e dos arreios riquíssimos dos corcéis.
Bráfama, à frente, o manto de puríssima alvura sobre o arcaboiço forte e
esbelto, levava frequentes vezes a mão sobre os olhos, procurando ver através
dos raios do sol que se escondia na direcção do mar a torre amada de Salúquia,
quando alguma elevação de terreno mais favorável, lhe permitisse divisar a
sombra minúscula do castelo, que a alma há muito entrevia antes que os olhos
pudessem enxergar. Mas as sombras da noite vieram envolvê-los e, enquanto o
globo rubro se escondia sob o dorso das serranias do Ocidente, a lua vinha saudá-los,
trazendo-lhes na sua luz as preces e os desejos que Salúquia e as suas damas
lhe confiavam, para os deixar cair, como amorosa mensageira, sobre Bráfama e os
cavaleiros da comitiva nupcial.
A noite ia avançando, e a caravana, a quem a fadiga de um rápido trotar
foi amortecendo lentamente o ardor festivo, caminhava silenciosamente,
quebrando o eco solitário dos vales com o ruído estrepitoso de um tropel
apressado, cortado de vez em quando pelo relinchar alegre dos cavalos, nos
quais a espuma do cansaço punha manchas alvas sobre a cor negra do pêlo
aveludado.
Das bandas do Levante elevava-se já uma aragem ligeira e fria: as
estrelas iam esmaecendo no fulgor, e a porteira do Oriente surgia em toda a
lucilante beleza, deixando atrás de si um rasto pálido que gradualmente ia
enrubescendo e começando a tansformar em cristais doirados as pequenas gotas de
orvalho que refrescavam a terra adormecida. Apenas uma légua separava Bráfama
de Salúquia.
O cortejo mourisco caminhava agora num vale lindíssimo que despertava
risonho e florido aos beijos do sol nascente. Umas colinas impediam ainda a
visão querida do castelo da noiva.
Renascera o entusiasmo e a alegria, e a caravana galopava cheia de
prazer, colhendo flores das árvores que orlavam o caminho, para as levar, como
saudações frescas e coloridas, à corte Salúquia. De súbito, os cavalos deram
sinais de inquietação e receio. Relinchavam fortemente e mostravam-se agitados.
Bráfarna estacou e a comitiva fez alto. Entreolharam-se todos, surpresos e
indecisos. Numa voz rouca de terror, um velho árabe, que seguia ao lado de
Bráfama, gritou — além…, e apontava com a mão trémula, uma nuvem de poeira que
avançava em turbilhão, deixando entrever armas, que reluziam ao sol, e
pavilhões brancos com a cruz da Fé.
Bráfarna exclamou:
— São os cristãos!
— E vêm para nós! — disse um cavaleiro árabe, moço e destemido guerreiro
para quem o fragor dos combates tinha encantos e perigos que o embriagava numa
epopeia de heroísmos. Desembainhando, num movimento rápido, a lâmina curva e
brilhante, exclamou:
— Vamos a eles!... Allah seja por nós e atirou o cavalo numa correria
doida ao encontro da morte.
Bráfama reconheceu o perigo inevitável. Os cristãos estavam perto. Era um
bando superior em número aos cavaleiros sarracenos; tinham além disso, sobre
eles, a vantagem de vir aprestados e armados para o combate, enquanto Bráfama e
os seus caminhavam para uma festa de núpcias. Era, portanto, a morte certa,
fatal, irremediável. Mas um crente de Allah nunca foge, e encara a morte,
sempre, frente a frente.
Pálido, um pouco trémulo, os olhos quase velados por uma neblina dolorosa
que do coração lhe subia, Bráfama encarou a sua gente e disse-lhe:
— Irmãos… é a morte! Allah assim o quis. E, tirando do peito uma rosa
branca que colhera para oferecer à noiva, beijou-a demoradamente, e ao soltar
os lábios daquele misterioso beijo, elevou os olhos turvos de lágrimas para o
céu, agora fulgurante de oiro, parecendo-lhe ver no fundo azul um castelo em
festa, onde uma figura linda de mulher, branca como a lua e formosa como a
estrela da manhã que a sua vista ainda há pouco namorava, estendia para ele
languidamente o braço, para receber a rosa em que os seus lábios haviam
deposto, como num puro relicário, toda a alma dum imenso e infeliz amor.
Em seguida, voltando-se para a comitiva, disse num tom quase de súplica:
Se alguém se salvar, leve a Salúquia esta flor, e escondeu-a sob o manto,
junto ao coração. Depois, num impulso rápido, renasceu o guerreiro e, sacando
com energia o alfange, esporeou o cavalo a defrontar-se com o inimigo. Todos o
seguiram com a mesma coragem e rapidez, e o cortejo de núpcias transformou-se
numa cavalgada de morte.
Os soldados da cruz eram comandados por dois irmãos, Álvaro Rodrigues e
Pedro Rodrigues, dois heróicos combatentes que vinham assolando o Alentejo, com
o extermínio feroz das hostes sarracenas. Chegou o momento supremo. Os dois
bandos acometeram-se com um furor de ódio e vingança. Confundiam-se as
imprecações selvagens dos discípulos do crescente com os gritos de morte dos
defensores da cruz.
Alfanges e adagas fulgiam em crispações de fogo e em manchas vermelhas de
sangue a referver no ódio. Os cristãos, ao fim de poucos momentos, levavam os
moiros de vencida. Tinham a vantagem do número e a preparação para a luta
naquele momento. Os Árabes resistiam enquanto um sopro de vida lhes animou o
braço rijo e destemido. Finalmente, sucumbiram todos.
Álvaro Rodrigues matara
Bráfama, que tombou do cavalo murmurando palavras que os cristãos não puderam
compreender.
Era preciso agora fazer o resto: tomar a vila de «Arucci-a-Nova». E Pedro
Rodrigues lembrou um ardiloso expediente que havia de surtir efeito.
imediatamente os cadáveres foram despojados das vestimentas, que os
soldados cristãos envergaram soltando gargalhadas e exclamações alegres.
Álvaro Rodrigues quis embrulhar-se no manto de Bráfama, o seu adversário
morto; um soldado trouxe-lho; envolveu-se nele, meio enrolado, procurando
ocultar as nódoas vermelhas do sangue do sarraceno, destacando-se como flores
rubras sobre a alvura puríssima e brilhante. E, numa mascarada macabra e
traiçoeira, o bando cristão encaminhou-se em galope rápido para a vila
mourisca, atroando os ares com gritos de simulação festiva e exclamações árabes
de saudação e alegria.
Ao divisar ao longe um turbilhão de poeira que avançava rápidamente,
Salúquia e todas as escravas ergueram-se apressadamente num ímpeto de júbilo e
curiosidade. Eram eles; em voz trémula, ordenou que fossem abertas as portas da
vila e que gente da sua corte lhes fosse prestar as honras da recepção.
Correram os moiros da pequena terra a franquear as entradas, enquanto
sobre o minarete Fátima, Zuleima e a deslumbrante corte feminina da
«alcaidessa» preparavam um dilúvio de pétalas de rosas, para caírem como beijos
alados sobre o cortejo desejado de Bráfama.
Os falsos mouros entraram, como uma rajada de sangue, nas muralhas em
festa de Arucci-a-Nova. E no ar misuravam-se os ecos alegres das saudações dos
Árabes aos gritos de extermínio da legião cristã.
Um grupo de agarenos fugiu em
direcção ao castelo a avisar Salúquia do traiçoeiro ardil. Era impossível a
resistência. A vila estava nas mãos dos cristãos que continuavam a espalhar a
morte numa sementeira de ódio religioso, fatal e sanguinolento.
Salúquia teve, num momento, a visão rápida da tragédia. Pareceu-lhe ver
ainda o noivo enviando no sopro da agonia o beijo nupcial, que os inimigos
transformaram numa lágrima rubra a gelar na morte.
A nuvem do fatalismo que parara, como presságio, sobre o seu coração em
toda aquela noite, convertera-se na tremenda tempestade de luto, assoladora
como um furacão de dor e de desgraça.
As mulheres árabes soltavam gritos e ajoelhavam, elevando as mãos ao céu
numa súplica de desespero e de fé. Lá fora rugia, cada vez mais intensa, a onda
de aniquilação saída das adagas dos soldados da cruz, galgando, numa galopada
sinistra, o curto caminho que conduzia ao castelo da governadora.
Salúquia,
figura pálida e grandiosa neste drama horrível, parecia lançar um estranho desafio
à legião que a ameaçava, pela serenidade do porte que as lágrimas já não vinham
sentimentalizar.
Numa frase rápida, decisiva e firme, mandou que fossem cerrar as portas
do seu castelo (último reduto ainda não conquistado). E, enquanto a ordem foi
executada, passeava, serena e heróica, de um lado a outro lado do minarete,
afogando o olhar no sangue que corria em toda a povoação, envolta na prece
extrema que os lábios dolorosos das suas escravas enviavam a Allah, por suprema
esperança de almas perdidas.
Trouxeram-lhe as chaves momentos depois, quando ao
castelo chegava a vanguarda dos irmãos Rodrigues.
As portas estavam fechadas.
Era apenas um instante de demora, o tempo
preciso para as forçar violentamente. E o trabalho começou, reforçado daí a
pouco pelos que vinham depois, atroando os ares num ruído formidável que cobria
as vozes clamorosas dos sitiados na sua crescente litania de angústia.
Salúquia
subiu ao ponto mais elevado do minarete, apertando nervosamente numa das mãos
as chaves da fortaleza, e num impulso rápido, do valerosa resolução do
heroísmo, atirou-se ao espaço. Um espantoso grito de dor aflorou a todas as
bocas:
— Salúquia! — e correram a debruçar-se à muralha do minarete.
Na esplanada do castelo, pálida e linda, com um fio de sangue a
manchar-lhe o rosto num sulco de morte, ela lá estava guardando heróicamente
nas mãos fechadas, numa crispação de energia que a morte petreficava, as chaves
do castelo árabe, de onde ia abater-se a bandeira rubra do Islam.
As portas ainda não estavam forçadas, e um dos cristãos ia arrancar
brutalmente das mãos de Salúquia as chaves da fortaleza. Álvaro Rodrigues
deteve-o. Fez-se na consciência um relâmpago de justiça, e sentiu esmagado o
seu orgulho de conquistador perante aquele cadáver que era uma grande lição de
heroicidade. Curvou-se sobre a morta e com uma dobra do manto de Bráfama, quis
limpar-lhe a mancha de sangue que empanava um pouco a formosura do rosto de
Salúquia; nesse momento o manto soltou-se e tombou de oculta prega uma rosa
branca, em cujas pétalas havia nódoas estranhas de cor vermelha. E a rosa caiu
num deslizar suave, sobre os lábios frios da princesa moura.
Era a rosa de
Bráfama, que este escondera junto ao coração, e que o golpe mortal da adaga de
Álvaro Rodrigues aljofrara num orvalho de sangue. A flor cumpria a sagrada
súplica do noivo de Salúquia. O sangue de ambos misturou-se naquele ósculo
fatal e perfumado, através das pétalas de uma rosa de misterioso destino.
O capitão português descobriu-se num gesto de respeito e ordenou
homenagens fúnebres, solenes, grandiosas; e como preito imortal ao acto de
bizarro valor, proclamou que «Arueci-a-Nova» passaria a denominar-se a vila de Moura.
E assim, através dos tempos, das raças e das gerações, vai perpetuando a
minha linda e adorável terra alentejana a lenda dolorosa de Salúquia, cuja
imagem pálida e formosa eu sonho a debruçar-se no velho castelo em ruínas,
pelas noites luminosas e odoríferas como aquela do seu noivado de morte, que o
destino transformou na manhã vermelha de uma epopeia de supremo heroísmo.