Foi ao fim da tarde.
Corria o ano de 1160 e era rei de Portugal D. Afonso Henriques. A conquista de
Alcácer tinha-lhe valido grande repercussão nos reinos de Leão e Castela e até
por terras de sarracenos. Assim, o jovem rei D. Fernando II de Leão pedira uma
aliança com o rei português e para esse fim encontraram-se em Celanova. As
coisas correram de boa feição e, satisfeito com os resultados, D. Afonso
Henriques voltou ao seu castelo, ordenando que viesse à sua presença o jovem D.
Nuno Mendes.
Solícito, o cavaleiro
apressou-se a apresentar-se ante o seu rei.
— Senhor, disseram-me
que precisais falar-me.
O rei sorriu,
mostrando a sua satisfação.
— É certo. Preciso
dizer-vos que nem tudo são lutas neste mundo.
O jovem cavaleiro
olhou D. Afonso Henriques. Um íntimo pensamento atravessou-lhe o cérebro como
um relâmpago, enchendo-o de luz, mas, como relâmpago também, essa luz
desapareceu, deixando tudo mais negro à sua volta. Como o rei silenciasse, ele,
espiando-lhe a expressão, arriscou:
— Gostaria de poder
compreender-vos, Senhor!
O rei tornou então:
— Iremos ter alguns
anos de paz com Leão!
Aliviado com o rumo
da conversa, o jovem voltou a perguntar:
— Achais que isso
será um facto?
O rei sorriu numa
expressão franca:
— Acompanhaste-me a
Celanova, não é verdade?
— Essa honra me
deste!
— Porque a merecíeis!
E sabeis também que ali fui para avistar-me com esse jovem e ardoroso D.
Fernando de Leão.
— Os tratos foram
secretos, mas falou-se muito deles entre a cavalaria...
— E que vos pareceu a
conclusão a que chegámos?
O jovem mostrou-se
embaraçado.
— Senhor, só vós
sabeis o acordo que fizestes. Nós apenas aventámos suposições...
— Pois ireis saber o
que ficou estipulado.
— Grande honra me
concedeis, Senhor.
— Ouvi, então: a D.
Fernando II, filho mais novo de D. Afonso VII, coube por determinação paterna o
governo de Leão, Estremadura e Galiza. Ora, a fama das nossas vitórias chegou a
Leão e Fernando veio solicitar-me a aliança de Portugal.
— Aliança que
aceitastes...
— Sim... com uma
condição. Sabeis qual é?
— Não, meu senhor!
O rei olhou
intencionalmente o jovem cavaleiro. Depois, com voz firme e pausada, essa voz
que tornava as suas ordens indiscutíveis, elucidou:
— A condição é esta:
o casamento de Fernando de Leão com a infanta Dona Urraca, filha legítima do
rei de Portugal.
A palidez de D. Nuno
tornou-se evidente. Os seus belos olhos abriram-se numa expressão de assombro.
Murmurou quase, ao perguntar:
— D. Fernando e Dona
Urraca irão casar-se?
D. Afonso Henriques
tomou uma expressão enérgica.
— Que encontrais de
estranho nesse facto? Não é ele rei, jovem e poderoso?
D. Nuno mordeu os
lábios e arriscou:
— Mas... Dona
Urraca...
O rei interrompeu
solene:
— ... é minha filha,
bela e prima direita de seu futuro esposo. Que encontrais de mal nessa união?
O jovem cavaleiro,
cada vez mais pálido, não encontrou resposta. Mas o rei insistiu:
— Dizei, D. Nuno
Mendes...
— Senhor... vossa
filha Dona Urraca... é ainda tão jovem...
— Decerto! Mas se o
inconveniente é só esse, posso afirmar-vos que Dona Urraca só casará daqui a
cinco anos. Mas desde já ficarão prometidos. Assim o quero!
D. Nuno encontrou
audácia para sorrir.
— E vós podereis
querer, meu Senhor!
— Sim, posso! Dona
Urraca faz-se mulher e é linda! Quando menos o esperar pode alguém apossar-se
do seu coração.
— Mas vós sois rei!
— Ficaria desgostoso
se tivesse de a ferir, impondo-lhe uma vontade que sei ser para ela sagrada!
Tristemente, o jovem
murmurou:
— D. Urraca é
demasiadamente dócil para os tempos duros que atravessamos!
O rei português
sorriu.
— Achais isso? Pois
eu penso que uma mulher nunca será demasiadamente dócil.
— Que Deus proteja a
Senhora Dona Urraca!
— Há-de proteger! Seu
primo é um homem que sabe agradar às mulheres. E, dessa união, muito de
proveitoso pode surgir para Portugal.
Decerto que esse
casamento poderá assegurar a paz com Leão...
— E o entendimento
necessário para nos ajudarmos mutuamente na dilatação dos nossos territórios, à
custa dos sarracenos!
Quase acabrunhado, o
cavaleiro D. Nuno anuiu:
— Assim é, meu
senhor!
O rei sorriu numa
franca expressão.
— Parece que esta
união vos não alegra, D. Nuno! Porquê?
Um tanto embaraçado,
o jovem respondeu:
— Senhor! O que
fizerdes, fareis por bem! Portanto, se essa aliança vos agrada, para maior
glória de Portugal, eu me congratulo convosco, Senhor!
A voz do rei
tornou-se menos imperiosa.
— Ainda bem que
compreendestes! Sabia que poderia continuar a contar com a vossa confiança.
— E porque não
havíeis de contar?
O rei tornou-se quase
irónico.
— D. Nuno Mendes, eu
já tive vinte anos. Sei o que pensava e como pensava. E digo-vos — pela muita
estima que vos tenho — que eu teria reagido com menos prudência... Mas conto
convosco!
— Podeis sempre
contar comigo, Senhor!
— Assim o espero. Ide
vós mesmo dar esta nova a minha filha Dona Urraca.
Os belos olhos do
jovem cavaleiro voltaram a abrir-se, mas desta vez numa súplica:
— Senhor!...
Enérgico, o rei cortou-lhe
a palavra:
— Ide! Assim o quero!
Só vós podereis dominar esses tenros treze anos...
E como o cavaleiro
continuasse a olhá-lo, desta vez numa súplica muda, D. Afonso Henriques
endureceu mais a voz:
— Ide! Porque
esperais?
O jovem arriscou:
— Tanto me pede a
vossa confiança?
— A pátria pede-vos a
vida. Eu peço-vos a felicidade de Dona Urraca.
— Oh, Senhor... se
assim fosse!...
— Só vós sabereis
prepará-la para que se cumpra a minha promessa. E agora ide sem demora! As
feridas devem curar-se enquanto quentes...
Quando a jovem
infanta desceu ao jardim, por ordem expressa de seu pai, ficou perplexa por se
encontrar na frente de D. Nuno Mendes. Perguntou, não escondendo a sua
ansiedade:
— Vós? Mas porquê, a
estas horas e com o consentimento de meu pai?
Beijando-lhe as
pontas dos dedos com ternura, o jovem cavaleiro patenteou, na voz e na
expressão do rosto, toda a tristeza que lhe ia na alma.
— Senhora! Morreram
as nossas fugas pelo jardim em noites de luar... As nossas juras de amor
trocadas em segredo não têm mais razão de existir... As nossas interrogações
sobre o futuro serão desnecessárias, porque o futuro veio bater-nos à porta!...
A jovem infanta ficou
ainda mais inquieta.
— Meu pai descobriu
que nos amamos?
D. Nuno Mendes
respondeu, tentando serenidade:
— Creio que sim… mas
não sei como isso aconteceu...
— Então... ele
consente?...
A expressão do jovem
cavaleiro tornou-se esfíngica.
— O senhor D. Afonso
Henriques, nosso rei e vosso pai, tem os seus planos, e pediu-me que fosse eu
próprio a transmitir-vos o que houve por bem decidir.
A jovem infanta
mostrou-se assustada.
— D. Nuno! Dizei-me
depressa o que dedidiu meu pai!...
— Que em Celanova,
donde regressámos, ficou assente com o rei de Leão, Galiza e Estremadura que
vós, Senhora Dona Urraca, filha do rei de Portugal, sereis esposa de vosso
primo!
A infanta
empalideceu. No seu rosto de menina surgiu uma expressão de revolta.
— Não! Não quero!
D. Nuno tocou-lhe ao
de leve numa das mãos:
— Suplico-vos!
Acalmei-vos, minha bela infanta! O que está decidido não terá discussão, bem o
sabeis! Este acordo — pede-me vosso pai para vos transmitir — será óptimo para
o nosso reino e o de Leão!
A boca bem desenhada
da infanta de Portugal teve um pequeno trejeito de choro. A sua voz soou
lamentosa:
— E eu, D. Nuno?
Eu... não conto?
Profunda e quente, a
voz do jovem cavaleiro afirmou:
— Contais, sim! Vós
sereis feliz!
— Como... se não amo quem
me vão dar por esposo?
— Acabareis por
amá-lo. Lembrais-vos ainda do vosso primo, o rei de Leão?
— Vi-o há tanto
tempo... e eu era tão pequenina...
— Pois deveis vê-lo
agora. Todas as damas casadoiras aspiram a um olhar seu. Sossegai, pois! Haveis
de amá-lo… e ele vos amará!
— E vós?
— Encontrarei repouso
nas lutas que irão seguir-se contra os infiéis.
Os olhos da bela
infanta inundaram-se de lágrimas.
— Oh, D. Nuno Mendes,
meu amigo! Como podeis dizer-me tais coisas?! Acreditais que irei esquecer-vos?
— Assim é preciso.
— Porquê?
— Para bem de
Portugal e...
A infanta interrompeu
o cavaleiro:
— ... e para meu bem?
— Assim o creio!
Ela meneou a cabeça.
— Vereis, D. Nuno, o
que o futuro dirá ao mundo! Porém conheço meu pai e sei que, se é essa a sua
vontade, só teremos que obedecer!
Beijando
respeitosamente os finos dedos da infanta de Portugal, D. Nuno exclamou solene:
— Mil perdões,
Senhora!
Ela admirou-se.
— De quê?
— Da forma pouco
calorosa como vos expus tão alto assunto...
Por entre as lágrimas
discretas, a jovem infanta sorriu:
— Só posso
agradecer-vos a forma delicada e altruísta como vos desempenhastes de tão
espinhosa missão. Na verdade, meu pai soube escolher o mensageiro. Só de vós
aceitaria tão pesado fardo!
D. Nuno apressou-se a
esclarecer:
— Neste momento sou
apenas um dedicado súbdito de vosso pai e um silencioso admirador vosso!
A jovem mordeu os
lábios, para conseguir manter a dignidade que o seu nome exigia e não chorar
perdidamente com a fraqueza dos treze anos. Depois, estendendo de novo a mão
pequenina ao jovem cavaleiro, murmurou:
— Adeus, D. Nuno! Que
o Céu nos proteja... e nos una, já que tão cedo a Terra nos separa!...
O vento zunia com
impiedade, arremessando ao rosto dos contendores a terra que em novelos se
levantava do chão. O exército de Afonso Henriques caía em massa sobre o dos
sarracenos. A luta em campo aberto levantava gritos e imprecações que o vento
levava. Os estandartes batiam furiosamente, como pássaros na agonia, cortando
os ares. E as vitórias do rei português prosseguiam por terras do Alentejo em
direcção ao Algarve. E assim, em pouco tempo, chegaram perto da antiga cidade
de Medóbriga.
Aí acamparam os de
Portugal. O rei parecia contente. E conversando com um dos seus homens de
confiança, pediu que mandassem à sua presença D. Nuno Mendes. O jovem cavaleiro
não se fez esperar. Vendo-o perfilado na sua frente, o rei falou-lhe:
— D. Nuno Mendes,
sabeis o apreço em que vos tenho. Sois um cavaleiro valente!
Com mais delicadeza
que humildade, o jovem sublinhou:
— A vossa confiança
dá-me forças para levar até ao fim as minhas missões...
— ... as quais
acabais sempre com êxito!
— Mesmo que saia
ferido do combate...
Havia um tanto de
ironia na voz do cavaleiro D. Nuno. O rei português compreendeu-o, mas não se
amofinou. Pelo contrário. Olhou-o atentamente, num ar admirativo, e
acrescentou:
— O vosso mérito é
indiscutível. Tenho-vos observado em campo aberto e verificado que procurais
sempre o ponto mais aceso da luta, o local de mais extrema responsabilidade.
— Cumpro a minha
obrigação de cavaleiro.
— Levais bem longe a
vossa obrigação...
— Senhor! Talvez um
dia possa filiar-me numa ordem fundada por vós. Ordem que me obrigue a viver no
claustro, durante a paz, e na guerra a vosso lado, combatendo!
O rei sorriu:
— Bravo, D. Nuno
Mendes! Folgo em ouvir-vos! Ficarei agora plenamente descansado sobre algo que
me preocupava ainda. Mas estou a desviar-me do assunto que me levou a
convocar-vos...
— Dizei, então,
Senhor!
O rei respirou o ar
da tarde que o envolvia, a plenos pulmões. Depois, o seu rosto tomou aquela
expressão grave que assumia sempre que falava de guerra.
— Sabeis que estamos
acampados perto do castelo de Arminho?
— Assim me foi dito,
Senhor!
— Noutros tempos
viveram aqui homens de força que o defenderam até à última gota do seu sangue.
Mas os árabes chegaram e dele fizeram sua morada.
— Sei que Arminho é
uma praça forte dos Sarracenos...
— Mas breve será
nossa! Amanhã, assim que o Sol dê indícios de começar a romper, cairemos sobre
o castelo — esse famoso castelo de Arminho, que desejo para nós!
— A ideia apraz-me,
Senhor!
— Ainda bem! E conto
convosco para comandar a vanguarda!
— A vossa confiança
em mim não cairá em vão. Arminho será nosso!
O rei sorriu. Fez com
a cabeça um sinal de aprovação. O sangue fervia nas veias desse jovem que
ficara a seu lado apesar de lhe ter feito conhecer o travo da amargura. E D.
Afonso Henriques sentia uma simpatia especial por homens cujo ardor na luta
fosse semelhante ao seu. Despediu-o com um gesto amigo. E ficou-se na sua
tenda, largamente a pensar.
A tarde morria aos
poucos na charneca de terra encarniçada. No firmamento, traços de fogo
desenhavam-se, formando um quadro bastante estranho. E o vento, correndo agora
mais sereno, parecia murmurar frases de estímulo ao exército acampado.
Bocejando em pequenos
sopros de ar puro, a madrugada ergueu-se. Uma luz ténue mas prometedora veio já
encontrar em ordem de marcha o exército português. O objectivo estava quase à
vista — esse famoso castelo de Arminho que D. Afonso Henriques tanto desejava
possuir. Chegada a hora, as hostes dispuseram-se para o assalto. O início da
luta soou. Houve um momento de pânico dentro do castelo, mas os portugueses,
que atacavam com fúria, sentiram que o inimigo começava a recompor-se. Deram-se
as primeiras baixas. De um e outro lado, combatia-se com vigor. D. Afonso
Henriques enervou-se. Não esperava tanta resistência. Chamou então de parte o
comandante da vanguarda e gritou-lhe, no meio da vozearia geral:
— D. Nuno Mendes!
Tereis de cumprir mais uma missão arriscada!
— Mandai, Senhor!
— Ide ao castelo e
dizei ao alcaide que, se teimarem em continuar na luta e eu os vencer, passarei
todos à espada! Todos! Compreendeis?
— Direi apenas isso?
— Será o bastante
para pôr em perigo a vossa e as nossas vidas!
— Compreendo, Senhor.
Irei sem demora.
E o cavaleiro, dando
de esporas ao cavalo, correu em direcção ao castelo com o pedido de
parlamentar. O combate suspendeu-se por momentos. Todos esperavam ansiosos
novas de D. Nuno Mendes. Se este não voltasse dentro dum prazo estipulado, o
combate continuaria com redobrado ímpeto. De súbito, porém, a figura esbelta do
cavaleiro português desenhou-se sobre o muro do castelo e a sua voz, que já se
habituara ao comando, soou sonora e firme:
— Não é necessário
combater mais porque a fortaleza já se dá!
Houve um movimento de
alegria. O porta-estandarte correu a içar a bandeira. E D. Afonso Henriques,
erguendo a sua espada, gritou com entusiasmo:
— Que Deus seja
louvado e vós, também, D. Nuno Mendes! A vitória é nossa! A vila que fundarei
onde já foi outra vila, nossa será também. Mas não se chamará Arminho e sim
Seda... já que «se dá!»
E assim, a vila do
castelo de Arminho, de remotíssima idade, passou a chamar-se Seda desde essa
famosa conquista numa bela manhã em que o vento deixou de soprar e um jovem de
sangue ardente e coração destroçado dava tudo por tudo para, nas lutas em prol
da dilatação do Portugal, esquecer um grande mas impossível amor.
Fonte:
Gentil Marques, Lendas de Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, 1997 [1962],
p.Volume V, pp. 347-354
Bom Dia Alentejo!