Caía a tarde de
mansinho.
O sol punha rabiscos
de fogo no firmamento azul-cinzento.
No vale, onde algumas
casas pequenas pareciam de brinquedo, vistas do alto do monte, uma jovem tocava
harpa de um modo quase distraído. O seu rosto de belas feições gritava sem voz
a aflição que a dominava. Perto, uma dama de meia-idade tecia. Também a sua
expressão era triste, apreensiva...
De súbito, a jovem
parou de tocar, deixando incompleta a ária de amor e queixume que até aí nunca
deixara em meio. Gemeram as cordas da harpa, num soluçar dolente, ao abandono
dos dedos da jovem. A dama de meia-idade ergueu a cabeça. Fitou a donzela e,
numa voz bondosa, perguntou:
— Que tens, Maria?
Porque não continuas?
A jovem suspirou. A
sua voz soou baixa e fraca.
— Não posso!
Perdoa-me, mas não posso!
Sorriu a dama, num
sorriso que lembrava lágrimas.
— Sei o que te
aflige: a demora de Marcelo. Mas pretenderás tu amá-lo mais do que eu, que sou
sua mãe?
Novo suspiro de
Maria, agora mais forte. Torceu as mãos, como a tentar dominar-se. Mas logo se
levantou do cantinho onde estivera tocando e veio sentar-se aos pés da sua
protectora. Deitou-lhe a cabeça no colo. Queria atordoar-se, esquecer que o
tempo corria! A senhora acariciou-lhe os cabelos. Voltou a falar-lhe:
— Tem calma! Assim
nada conseguirás. E torno a lembrar-te que não o amas mais do que eu...
Maria ergueu o olhar.
Olhos rasos de lágrimas.
— Queres-lhe muito,
bem sei. Tanto como eu. Mas eu e tu somos diferentes!
— Diferentes em quê?
— No sangue que corre
em nossas veias! O meu não é igual ao teu. O meu não vem desse glorioso
Viriato, símbolo deste povo não menos glorioso!
Voltou a senhora a
acariciar os cabelos da jovem, sentada a seus pés.
— Criei-te de
pequenina, minha filha, e ensinei-te a seres forte como todos os Lusitanos.
Terás, pois, de ser como nós!
O nervosismo punha um
estrangulamento na voz da jovem Maria.
— Sei lá qual será a
minha origem! Grega?... Romana?...
— A tua origem,
agora, pouco importa! Quando te encontrei abandonada no sopé desta montanha que
se ergue à nossa frente, não quis saber quem eras, nem donde terias vindo. Eras
uma criança que chorava com fome e tremia de frio!
Com arrebatamento, a
jovem ajuntou:
— E hoje sou a futura
esposa de Marcelo, o teu filho bem-amado!
— O meu único amparo
moral, desde que os Romanos mataram o meu esposo! Tu ainda o viste. Mas eras
pequenina quando o levaram daqui... Nunca mais soube dele, nunca mais! Nem
sequer qual foi o seu fim, nem onde o enterraram!
A voz da senhora que
falava endureceu um pouco e acrescentou:
— Por isso, minha
filha, Marcelo tem uma dívida de sangue para com os Romanos!
A jovem ergueu-se.
— Eis o que me aflige
ainda mais!
— Porquê? Não
acreditas no destino? Que podes recear mais do que eu? O que está escrito terá
de cumprir-se, queiras ou não queiras, soframos ou não!
— Não compreendo esse
fatalismo.
O olhar da senhora
iluminou-se.
— Escuta, Maria…
Marcelo vem aí!
Levantou-se a jovem
num sobressalto.
— Onde?
Baixo, quase num
sussurro, olhos perdidos no espaço, a dama esclareceu:
— Algures. Mas vem
aí. Pressinto-o mesmo à distância! Não descobres o mesmo? Não és mãe, Maria. Não
podes sentir o que eu sinto!
Mas já a jovem, num
impulso, a interrompia:
— Deixa-me ir ao seu
encontro!
Num sinal negativo, a
mãe de Marcelo abanou a cabeça.
— Não, Maria! Tu
corres mais do que eu e chegarás a seu lado antes que eu o veja. E então...
ambos se esquecerão desta pobre velha, que anseia, como tu, por ter notícias,
embora saiba dominar-se! Não, Maria. Espera um pouco. Ele já vem perto. Não
tardará!
Calou-se a dama. Mas
o silêncio que as separou durou apenas alguns segundos. Já se distinguia o
ruído de um cavalo correndo. Depois estacou. Marcelo desceu e entrou
impetuosamente na sala onde as duas mulheres o esperavam. Correu para a mãe,
beijou-a, mas logo a deixou para ir estreitar nos seus braços fortes a sua
deliciosa, inquieta noiva. Com beça encostada ao peito largo do lusitano, Maria
queixou-se:
— Como tardaste,
Marcelo! Já estava em cuidado!
Ele tomando nas mãos
a linda cabeça de fartos cabelos bem penteados, olhou-a, a fundo, nos olhos. A
sua expressão era de amargura e a amargura soou também a sua voz:
— As notícias são
péssimas! Cássio Longino tem vindo a destruir tudo por onde passa. É um homem
rancoroso, mau, um monstro de ambição!
Serena, a mãe de
Marcelo falou:
— Chegou talvez a
nossa hora... Mas quem sabe se não terá chegado também a desse tal Cássio
Longino?
Marcelo encheu o
peito de ar, antes de responder:
— Tudo é possível
agora, minha mãe. Mas uma coisa se torna urgente.
— O quê, meu filho?
— Pô-las a salvo
antes que ele chegue!
A dama franziu as
sobrancelhas. O seu rosto fechou-se numa expressão simultaneamente dura e
dolorosa.
— Queres pôr-nos a
salvo? Como?
Respirou de novo
Marcelo, antes de responder.
— Mãe! Demorei-me,
justamente, para encontrar o único meio de as livrar de Longino. Lembrei-me que
o monte que nos deu a nossa Maria poderia talvez conservá-la agora longe de
perigo.
Num grito, a jovem
agarrou-se a Marcelo.
— Não quero
separar-me de ti!
Mas a voz da velha
senhora voltou a ouvir-se, serena.
— Talvez Marcelo
tenha razão. Os homens não combatem com a mesma liberdade de espírito quando
têm a seu lado a mulher que amam.
A jovem revoltou-se.
— E ele... ficará
aqui, sozinho?
A mãe de Marcelo
perguntou:
— Todo este povo,
para ti, não representa nada?...
— Mas ele não é o
chefe!
— O chefe é um velho
e não tem filhos. Marcelo é o seu lugar-tenente. Não poderá agora abandoná-lo.
E acrescentou,
voltando-se para o filho:
— Diz-nos onde se
encontra o esconderijo que nos destinas, Marcelo, e eu própria conduzirei Maria
até lá.
O jovem guerreiro
levou uma das mãos à testa.
— Custa-me deixá-las
partir sozinhas. Eles podem aparecer de um momento para o outro.
A mãe tornou:
— Por isso mesmo,
deves ficar! Diz-me o caminho para chegar local que escolheste.
Marcelo fechou os
punhos.
— Receio que não
saibam encontrá-lo. É de difícil acesso e…
A velha senhora
interrompeu-o, enérgica:
— Marcelo, diz-me o
caminho antes que se faça tarde! É lá no cimo do monte?
— Sim. Mais ou menos
no lugar onde encontrou Maria. Escute com cuidado…
E o jovem explicou em
pormenor o difícil mas único caminho que levaria à salvação a mãe e a noiva.
Elas partiram por
fim. Levavam poucos mantimentos e muitas apreensões.
Ainda não havia decorrido uma hora sobre a fuga
de Maria e da mãe de Marcelo, quando o exército de Longino caiu sobre a pobre
aldeia. A defesa estava entregue a um número inferior à centena.
Quanto aos romanos,
chegavam aos cachos, passando do milhar. Travou-se a luta. Luta de desespero,
da parte invadida. Luta de vida ou de morte. Talvez porque os lusitanos estavam
decididos a vender cara a vida, não querendo entregar-se nem morrer sem causar
danos, o combate prolongou-se mais do Cássio Longino esperava. O facto enervou
o procônsul romano. Mandou redobrar de esforço e crueldade. Os lusitanos,
porém, continuavam firmes, embora cada vez em menor número, dispostos a morrer
matando o mais que pudessem. Todavia, já reduzidos a uma vintena, o chefe
consentiu na entrega da aldeia e dos seus homens em troca de liberdade das
mulheres. E a luta cessou, com grandes baixas também do lado do invasor.
A manhã já vinha
quando o procônsul romano mandou enfileirar os dezasseis homens que restavam,
para virem à sua presença. Um a um ele ia ouvindo e poupando a vida aos que
possuíam bens que lhe dessem em troca. Depois de ouvi-los, Cássio Longino fazia
a sua escolha. E um a um, iam passando esses lusitanos fortes de corpo e alma,
mais amargurados ainda por estarem vivos mas vencidos, ante a figura odiada do
chefe romano, escutando a sua sentença de vida ou de morte. Até que chegou a
vez do jovem Marcelo.
Longino olhou pouco à
vontade esse rosto pálido mas de olhar duro e firme que o causticava. Para
disfarçar ou para se vingar dessa ousadia falou-lhe:
— Tu eras o subchefe.
Para salvares a vida precisarias de grandes riquezas. E, segundo me informaram,
pouco mais tens que a tua casa e uma dúzia de cabeças de gado.
Altivamente, Marcelo
respondeu:
— A minha vida não
está à venda, creio!
Longino sorriu
felinamente:
— És pobre e
orgulhoso?... Olha que o teu chefe pagou cara a ousadia de falar-me como grande
senhor! Não só o mandei degolar, como fiquei com todos os seus haveres!
Marcelo retorquiu,
rápido:
— O mesmo te
acontecerá um dia!
Longino rangeu os
dentes e sentiu desejo de ferir, de marcar cruelmente o seu inimigo. Sabia que a
morte não o afligiria, porque era bravo. Mudou de táctica.
— Se não fosse o
preço da tua vida, creio que não resistiria a fazer-te desaparecer, e já!
Marcelo
surpreendeu-se.
— O preço? Que preço?
Acabaste de afirmar — e é verdade — que pouco mais tenho que uma dúzia de
cabeças de gado e a minha casa. Isto basta ao teu espírito ambicioso?
Cássio Longino riu
com maldade. Depois sublinhou bem a frase que iria ferir Marcelo:
— Tu nem sabes dar
valor ao tesouro que possuías!
O lusitano
alarmou-se.
— Que tesouro?
— Amaia!
Marcelo, fora de si,
gritou:
— Como sabes o seu
nome?
Sorrindo sempre,
Longino disse apenas:
— Foi ela.
— Ela?... Quando?
— Não grites, jovem
louco!
— Quero saber quando
te disse ela o seu nome!
— Ontem, quando
chegámos... Ela ia a fugir...
Louco de dor e de
fúria, Marcelo gritou mais:
— Onde a escondeste?
— Na minha tenda.
— Maldito! Não ouses
tocar-lhe, porque te arrependerás!
Num requinte de
cinismo, Longino vibrou o golpe maior.
— Amaia já não te
pertence! A velha deu-ma em troca da tua vida; quando os meus homens as
descobriram a caminho da montanha!
Quase possesso,
Marcelo ia atirar-se ao procônsul, mas foi agarrado pelos soldados romanos.
Alucinado, gritou-lhe:
— Mentes! Mentes,
malvado! A minha mãe daria a vida por ela!
Sem alterar a voz, o
romano tornou:
— E deu.
Os olhos de Marcelo
abriram-se num ímpeto de loucura. Baixou a voz, tornando-a cava.
— Que dizes?
— O que ouviste.
Depois de nos entregar a jovem Amaia, voltou a buscá-la, no mais aceso da nossa
luta. Calcula que matou um dos guardas, essa velha de granito: libertou a
jovem, e já iam de novo a fugir, quando foram descobertas. Os meus homens
mataram a velha e teriam morto a outra se... se ela não me tivesse agradado
tanto!...
Marcelo rugiu,
agarrado pelos soldados:
— Maldito sejas
enquanto viveres! Maldito sejas onde estiveres, seja na terra ou no mar!...
Enfadado já, Cássio
Longino ordenou:
— Levem-no daqui!
Marcelo gritou de
novo:
— Só depois de
matar-te!
E, lutando, tentou
libertar-se dos braços que o seguravam, na ânsia de desfazer o procônsul
romano. Mas Longino gritou:
— Segurem-no bem!
Parece um tigre!
De rastos, Marcelo
foi levado da sala. Mas gritava ainda:
— Amaia nunca será
tua! Sei que preferirá morrer! Sei! Compreendes?...
Como resposta,
Longino ordenou em voz mal segura:
— Que se aproxime o
que estava atrás desta fera que saiu. Vamos continuar! Tu? Não tens bens?
— Não.
— Pois serás
degolado! O outro a seguir? Ah! Já sei... já me disseram… Tu és rico... Está
bem... Ficarás preso até sairmos desta aldeia… O outro?
Um homem de
meia-idade adiantou-se.
— O que tenho não te
chega, decerto, porque não lhe sabes dar valor.
— Que possuis?
— Honra!
— Degolem-no! Agora o
último. Já começo a estar cansado disto! Que tens para me dar em troca da tua
vida?
Cerrando os dentes, o
último homem da fileira dos prisioneiros declarava:
— Ódio! Só ódio para
te dar! Mas esse é muito, muito!
Sem esperar mais,
Longino ordenou:
— Degolem-no também!
E levantando-se da
sua cadeira de espaldar, a cadeira do chefe aldeia, declarou:
— Vamos buscar Amaia
e ver o que havemos de fazer dessa fera que foi subchefe do inimigo e deverá
morrer! O ar aqui pesa-me... Sigamos para outras terras, quanto antes!
Quando Cássio Longino
chegou à porta da tenda onde ficara Amaia vigiada por dois soldados, viu esta
abandonada. Entrou nela e achou-a vazia. Alucinado, chamou os seus homens.
— Rebanho de imbecis!
Onde está Amaia?
A medo, um dos
soldados explicou:
— Quando trazíamos
Marcelo, este conseguiu libertar-se e fugir para aqui. Então lutou contra nós
quatro, ajudado pela rapariga. Dois dos meus camaradas morreram, outro está
cego e eu... escapei porque viera buscar reforços...
Foi a vez de Longino
rugir:
— Cambada de
poltrões! Um homem desarmado vencer quatro soldados!... Para onde fugiram?...
Vamos! Reúnam cinquenta homens e sigam-nos! Devem ter ido para a montanha!
Logo se formou o
batalhão que iria buscar os fugitivos. A montanha silenciosa e austera era o
objectivo. Mas a busca começou a tomar-se difícil. Longino gritou:
— Têm a certeza de
que passaram por aqui?
Um dos soldados
informou:
— Cássio Longino...
Vi-os subir aquele escarpado à beira do precipício. Não vale a pena
procurá-los. Não irão longe… porque por ali... mal vão!...
Gritou de novo, o procônsul:
— Mal vão, porquê?
— Porque encontrarão
a morte entre os rochedos...
Mas a montanha
silenciosa e austera deu abrigo aos fugitivos. Ali ficaram Marcelo e Amaia,
lado a lado, corações batendo em uníssono, cheios de dor pela perda da que tudo
sacrificara por eles. E os homens de Cássio Longino abandonaram a perseguição
ao jovem casal e seguiram para outras terras, espalhando sempre terror e
desolação. Mas a maldição caiu sobre Cássio Longino. Quando este, mais tarde,
regressava ao seu país natal, encontrou a morte no mar, onde ficou sepultado
com todas as riquezas que adquirira durante as lutas com os Lusitanos.
Entretanto, lá no
alto da montanha silenciosa e austera, Marcelo e Amaia foram construindo, pedra
a pedra, a sua casa. E os seus descendentes, dessa pequena casa fizeram um
castelo — o castelo de Marvão — grito que ecoado pelas penedias e levado pelo
vento chegou aos ouvidos dos que ficaram quando os soldados romanos diziam dos
fugitivos:
— Mal vão! Mal
vão!...
Esta é a lenda do
castelo de Marvão, que chegou a ser pertença dos Mouros, mas que, finalmente,
D. Sancho II conquistou, para o limpar da gente inimiga e dar de presente a
Portugal.
De Lendas de Portugal, Gentil Marques, Lisboa,
Círculo de Leitores, Lisboa, 1997 [1962], p.Volume II, pp. 159-166
Bom Dia Alentejo!
A
alma que lhe escondida é tanta…
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